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Entrevista concedida à Mariana Fernandes:


"A Casa Fortaleza - Como se vivencia a construção de uma casa e se lida com a frustração da ferrugem?"

 

Parte 1
 
No dia 03 de abril de 2021 a entrevista, concebida por Mariana Fernandes, foi realizada via Google Meet comigo, Laila Terra, no papel de artista visual que cria a sua casa de moradia como obra de arte. A entrevista foi revista posteriormente sendo adicionado acréscimos e aprofundamentos sobre os temas, estando eles em destaque.

Mariana Fernandes: O que veio primeiro, o projeto da casa como atelier ou projeto da casa como residência?

Laila Terra: Difícil afirmar com certeza, porque foi uma mistura dos dois. Mas acredito que a ideia de residência tenha vindo primeiro, o que nos moveu para a construir a casa foi a vontade de sair da cidade de São Paulo. Trabalhar longe de um grande centro urbano. Só que no nosso caso - meu caso e do Renzo Assano - é muito difícil separar a residência do trabalho. Então já estava implícita a ideia de que a casa seria já nosso espaço de trabalho. Queríamos sair de São Paulo e ganhar tempo para nos dedicarmos ao trabalho em ateliê – a casa estava implícito nisso.  Em São Paulo perdíamos horas com deslocamento e outras distrações, por isso escolhemos um lugar isolado, para focar o máximo possível em nosso trabalho artístico.

Mariana Fernandes: Como foi o processo de construção? Ele se iniciou em qual ano?

Laila Terra: Estamos morando na praia há 9 anos. Chegamos em Ubatuba no final de 2012 e demoramos aproximadamente seis meses para achar o terreno que desejávamos. A construção começou em julho de 2013 e ela foi relativamente rápida - a estrutura, colocação das sapatas, vigas metálicas etc. Mas entendemos que a construção não está ainda concluída. Apesar de termos pensado inicialmente em uma casa “pelada” - sem forro, por exemplo - a colocação das janelas, a concepção e fabricação dos móveis, garagem, tudo isso continua em processo, está levando mais tempo do que supúnhamos. Nos mudamos no dia 31 de dezembro de 2014 com a obra em curso. Então, fazendo as contas, demoramos 1 ano e meio para produzir o essencial.

Mariana Fernandes: Durante a construção da casa, como era a rotina de vocês?

Laila Terra: Houve variações na nossa rotina de vida, mas nesse um ano e meio, nosso tempo foi praticamente todo ele dedicado à construção da casa.

Nossa rotina se desenhou na base da "tentativa e erro". No início a gente acordava cedo - umas 6h - e como estávamos hospedados em uma casa que ficava na praia ao lado da que tínhamos comprado o terreno, Praia Vermelha, andávamos 3 km de bicicleta até chegar ao local da obra.  Passávamos o dia inteiro por lá. 

Com o tempo descobrimos que essa rotina não funcionava, pois tínhamos que levar o almoço ou cozinhar lá mesmo, precariamente. Então nos forçamos e nos adaptamos a um novo cronograma, começamos a almoçar às 10h e depois saíamos para o trabalho. Assim, o dia era mais bem aproveitado. Foi um processo de descoberta também - qual era o melhor método de trabalho.

Por vezes o Renzo não estava presente, pois viajava para realizar outras obras em parcerias diversas, por exemplo, com o Henrique (Oliveira)... Nesses períodos, com uma rotina bem rígida, eu fazia todo o trabalho sozinha.

No entanto, devo admitir que esse período foi muito gostoso. Era extremamente agradável pegar a bicicleta, ir para o trabalho árduo, depois, ao voltar, passar na praia e tomar um açaí.

A construção da casa não foi só trabalho físico, mas também foi uma grande investigação que rendeu um aprendizado consistente de técnicas de construção civil e pesquisa de materiais. Consegui estudar e organizar diferentes logísticas para a projeção de compra, recebimento e uso de materiais - saber quando a areia seria descarregada, para a contratação do trator; fazer cotação de preços para não estourar o orçamento... Essa logística é exaustiva, mas sem ela o trabalho fica inviável. 

Geralmente quem fazia isso era eu por telefone e ao vivo. Fazia diversas viagens nesse período à procura de materiais, instrumentos, ferramentas e outros recursos que compõem uma obra dessa natureza.

No início, a intenção era fazer uma construção "à seco" - usando steel frame, drywall, teto de manta líquida, tudo pré-moldado… hoje em dia é fácil achar esses materiais no Brasil, mas não na época, ou não existia, ou era muito caro, portanto, impraticável. 

Então passamos muito tempo pesquisando materiais, estudando na internet tutoriais em vídeos de métodos construtivos, investigando fornecedores e criando também. Inovando ou inventando operações, novas tecnologias.

Mariana Fernandes: Então os materiais usados foram do “tipo” das casas pré-moldadas? 

Laila Terra: Não! No final nós não conseguimos achar esses materiais e trabalhamos com o que havia disponível. Com exceção das vigas de aço, que conseguimos fazer como queríamos, inspirados pelo projeto Casa Farnsworth de Mies van der Rohe. Achamos esse projeto, do ponto de vista estético, extremamente bonito! Porque você consegue uma estrutura “parruda” e grande, mas ao mesmo tempo delgada e elegante. A ideia era essa, não queríamos fazer um “monstro” no meio da mata. Queríamos algo "transparente", que participasse da mata e o aço possibilitava isso. 

Na época não entendíamos sobre materiais ecológicos, então acabamos tendo a experiência com o concreto. E aí foi interessante, quando a gente fez a sapata nós vimos o que é trabalhar com concreto e agradecemos por escolher anteriormente pelas vigas de o aço. O concreto é um material problemático, é delicado, melindroso, faz muita sujeira, causa desperdício e não é a melhor opção ecológica, hoje sabemos.

Mas escolhemos o aço para a estrutura, não pelos motivos citados, e sim por uma questão estética e conceitual, que enfatiza e evidencia nossa referência arquitetônica. E depois, estudando mais, vimos que a construção com o aço era mais coerente, mais lógica e muito mais rápida. 

Após longa pesquisa, a gente resolveu usar um novo material no âmbito da construção civil, que foi o policarbonato alveolar, ele substituiu o vidro que figurava em nosso projeto de referência.  E trocamos o piso, por madeira - o chão da casa é do tipo Deck. O telhado já é criação nossa, Placa OSB Home com uma manta líquida. Inicialmente pensamos usar a manta alemã, mas não era acessível economicamente. Então inventamos a composição de Placa OSB com a manta líquida que funcionou perfeitamente. A única precaução que deve ser tomada é pintá-la periodicamente. Dá um certo trabalho, mas é uma versão de baixo custo, que cabia em nosso orçamento.

Mariana Fernandes: Já que você citou a Casa Farnsworth, o que para vocês era atraente nesse projeto do Mies van der Rohe? 

Laila Terra: Achamos a Casa Farnsworth extremamente bonita! A gente decidiu em São Paulo se mudar e construir uma casa, a partir daí começamos a pesquisar bastante modelos de casas. Na verdade, o Renzo estava pesquisando mais, fez até umas maquetes de casas em estilo japonês. E como a mãe dele é arquiteta, pesquisando na biblioteca dela, ele encontrou a Casa Farnsworth e eu fiquei completamente apaixonada. No início queríamos fazer uma réplica da casa, até descobrirmos que não seria possível. Após comprar o terreno, ficamos tentando encaixar a casa no terreno, tentamos várias e várias vezes, e de muitas maneiras, porque a ideia era copiar e executar o projeto da Casa Farnsworth, até que cedemos e adaptamos. Mas o "bonita", acontecimento estético que moveu nosso desejo desde o princípio, manteve-se, a casa é bonita!  Você não acha bonita?

Mariana Fernandes: Acho sim! Mas queria entender se as suas motivações eram mais puramente estéticas ou conceituais. Às vezes há outras motivações.

Laila Terra: Vou admitir que as principais motivações da minha vida são estéticas, mas estética quer dizer, antes de tudo, sensível, "sentível", o oposto de anestético ou anestésico. O sentido mais banal do termo também serve para mim: cachorro tem que ser bonito, casa tem que ser bonita… tudo tem que ser bonito... hahahah

Mariana Fernandes: Para você quais são as principais diferenças entre a Casa Farnsworth e a Casa Fortaleza?

Laila Terra: Tem muita coisa. No começo eu não sabia nada sobre a história da Casa Farnsworth, nós só havíamos gostado "esteticamente" dela e como queríamos fazer uma cópia começamos a estudá-la - no princípio só a parte de engenharia e arquitetura.

Ano passado eu escrevi um artigo, “De Vidro. Por que não recua ou morre?”, sobre essa casa e comecei a abrir as camadas da sua história. Comecei pela pesquisa mais ordinária, como todo mundo faz, na internet - você acha o site da casa e as imagens. Até que, nessa investigação, aprofundada em camadas, assim como se passa de um estrato geológico a outro, fui chegar à história da Edith Farnsworth, a cliente de Rohe, o que fez muita diferença… Lógico, tem o plano arquitetônico que é muito singular, mas esse plano arquitetônico da casa passa exatamente pelas diferenças entre narrativas históricas. 

A Edith era uma mulher extremamente inteligente, era médica e estudava literatura. Ela se empolgou com a ideia de chamar um nome da vanguarda cultural para realizar o projeto da sua casa. No início ela queria fazer uma parceria com o Mies van der Rohe. Ela acreditou que seria uma parceria. A primeira versão do projeto, cuja maquete foi exposta em uma grande mostra no MoMA, organizada por Philip Johnson, exibe notáveis diferenças com a casa construída. Entre elas, o projeto original tinha vidro fosco, por exemplo. Depois de contratado por Edith, Van der Rohe, foi excluindo-a do processo, pegando-o só para si.  Tomado pela hybris, ele se investiu de “eu sou o deus” e monopolizou a construção da casa. Essa crença do arquiteto modernista, que tudo sabia e dominava, o fez desprezar a opinião da moradora da futura casa. Então, fica claro que a casa não havia sido feita para ser habitada, mas para ser perpetuamente projeto arquitetônico ou obra de arte.

Mariana Fernandes: É verdade que a Edith e o Mies van der Rohe tiveram um relacionamento afetivo? 

Laila Terra: Mentira! Mentira resultante de uma versão falaciosa arquitetada na época. Em meus estudos eu fui cavando e cavoucando…e descobri na prática aquele princípio do Foucault da "construção de representações". E a história da Casa Farnsworth é totalmente manipulada para impor uma ideia, masculina e racionalista, para a arquitetura modernista e, assim, era preciso eliminar a Edith da história. Recontaram como se ela fosse uma mulher que teve por Van der Rohe um amor mal correspondido. Uma grave mentira para esconder a grande questão que é o fato de que ela encomendara uma parceria, seu desejo era a co-criação, mas o arquiteto a impediu afastando-a da execução do projeto. Ele cometeu vários erros, primeiro não levou em consideração que ela desejava um lar, uma casa para morar. Ele, por seu lado, queria assinar e expor uma obra de arte. Depois, ele ultrapassou o orçamento, pouco se importando com o fato de que não era sua competência tomar decisões a esse respeito, era ela quem bancava as despesas da obra. O terreno, por exemplo, é enorme e ela queria a casa em cima da colina para ter vista extensa, aberta, plena e, mesmo assim, privacidade. Ele, ignorando-a fez a casa na beira do rio, porque ali tem uma estrada, circunstância que privilegia a visibilidade da casa, ela seria vista por todos que passassem pela estrada. Todos poderiam ver a "sua" obra de arte. Mas isso acabou afetando Edith objetiva e subjetivamente, com as inundações sazonais do rio, as infestações de mosquitos, insetos variados e invasões de outras espécies habitantes de áreas úmidas, além de suprimir completamente sua desejada privacidade. Nos relatos de Edith, ela expressa o seu desconforto pela falta de privacidade. 

Então uma das diferenças da nossa casa em relação a Casa Farnsworth, são esses princípios radicais racionalistas da arquitetura moderna que desconsidera sistematicamente o que anima a edificação, que é quem a habita.

O olhar à distância para minha casa me causava grande frustração porque eu só via uma obra inacabada. Eu pensava: “... gente essa casa que tem ferrugem, tem formiga, que precisa pintar, fazer as janelas, fazer os móveis... que não termina nunca, é um caos”. Então tinha essa insatisfação em relação a minha casa. Mas depois do contato com a experiência de Edith, tudo mudou, eu mudei. 

Ao conhecer sua história comecei a rever, efetivamente, meu conceito de casa, passei a entender a natureza da narrativa falaciosa forjada para a obra Farnsworth. Quando você vê as fotos e lê os poemas de Edith você entra numa casa, a sente ganhando vida. Por 20 anos ela residiu ali. A casa ganhou alma. A ferrugem, a trepadeira que teima em subir aqui em casa, é a mesma que está nas fotos que Edith fez de sua morada. 

A experiência que ela nos transmite em sua escrita nos faz viver acompanhando todo o processo vital da sua residência, desde a gestação até a venda e retorno ao estatuto projetual.

Já o paradigma estético da Casa Fortaleza é processual. Ela, viva, carrega consigo seu projeto inacabável, como nós, vivos, carregamos conosco nosso ovo projeto e construção se fundem. 

A casa tem o projeto, mas a sua vida não para de transformá-lo, você não tem o controle disso. 

Casa Farnsworth é, geneticamente, um projeto e por um fado incontornável, se atualiza no plano do real, mas ao projeto retorna como maquete de uma casa que só pode existir no mundo virtual das ideias. Não é casa. Hoje em dia, né!? Quando a Edith a habitou foi uma operação poética que se produziu. Aqui invoco outra vez Foucault como referência, quando pensa a vida como obra de arte, uma existência estética, ou Nietzsche quando pensava a operação artística da vontade de potência inventando novas possibilidades de vida.

Mariana Fernandes: Você explicou o seu interesse e ponto de vista sobre a arquitetura modernista do Mies van der Rohe. Mas me fale um pouco como a arquitetura da Lina Bo Bardi e a Anarcoarquitetura também foram uma referência para a Casa Fortaleza.

Laila Terra: A estética Modernista me atrai bastante.  Mas também, o fato de morar na praia antes de construir a casa, me fez ver o que funcionava e o que não funcionava como arquitetura.  Na mata atlântica não funciona ter uma casa escura, não funciona uma casa com muitas paredes, não funciona uma casa toda forrada - porque os bichos moram dentro - comecei a ver que os elementos que em geral compõem as casas tradicionais - aquilo que a Bo Bardi chamou de “casa caverna” não funcionavam no litoral.  Diante desta constatação concluímos, Renzo e eu, que a estética Modernista era não só a que mais se adequava ao nosso projeto, mas era também extremamente apropriada às condições topográficas e geográficas da mata atlântica. Porque são casas cujos projetos favorecem a iluminação, a ventilação, são funcionais e manifestam uma inteligência relativa à economia espacial, são básicas em um sentido utilitário e excessivas no harmônico e aprazível… a nossa casa não tem nada “escondido”. É uma casa desadornada, descoberta, “nua”. Tudo a gente vê.  Não tem nada que tampe, ou cubra, que esconda uma fiação, por exemplo - toda sua estrutura é visível, está à mostra. Essa correspondência com a casa característica da arquitetura modernista não foi só uma decorrência de apreciação estética, mas também foi uma opção por princípios coerentes com alguns daqueles preconizados pelo modernismo.

Nós repensamos a casa do Mies van der Rohe e a recriamos com base em nossa inquietação e para o nosso mundo. É uma operação tal como a da tradução poética de uma língua para a outra, em que você precisa compor na sua língua materna arranjos estéticos (produção de efeitos sensórios) equivalentes aos agenciamentos sensíveis da primeira - traduz-se as expressões específicas de uma, em singularidades correspondentes na outra. A gente traduziu Casa Farnsworth para a "língua" da mata atlântica litorânea em 2013, e de tal forma que pudéssemos construi-la com nossas próprias mãos. Não contratamos empreiteiro com equipe terceirizada de mão de obra, não usamos rigorosamente os mesmos materiais… Só para enfatizar, a gente eliminou concreto. O modernismo é adepto do concreto. O Van der Rohe usava também o aço, mas o Le Corbusier, preferia o concreto.

Aqui vale uma digressão: na criação artística, a incorporação da memória aponta para processos operacionais que procuram reciclá-la em novos produtos culturais - citar, traduzir e comentar são três modos próprios da reciclagem cultural co-operada. A tradução, pretende a manter as qualidades características de um original noutra fisicalidade, seja material ou extramaterial, entre códigos, línguas, meios etc. A citação incorpora, parcial ou integralmente, uma outra obra desencadeando novos sentidos com o desvio do contexto original em direção às novas referências apresentadas pelo trabalho co-operador. O comentário é a citação ou tradução, com novos elementos somados aos seus significados originais; é a interação entre a materialidade do original incorporada e a informação introduzida pelo co-autor. A Casa Fortaleza, a nossa casa é tudo isso em devir. 

***

Já o coletivo artístico Anarcoarquitetura, fundado e intitulado por Matta-Clark, na cidade de Nova Iorque por volta das décadas de 1960 e 1970, nos ajudou em repensar os fundamentos desse nosso trabalho. Eu sei que o Gordon Matta-Clark faz uma forte e radical crítica à arquitetura modernista, mas o que nele nos interessou foi o caráter de sua intuição sobre as questões construtivas urbanas mais o seu investimento no conceito de comum. Todo o processo de construção da Casa Fortaleza teve inspiração no ativismo estético e nas práticas artísticas autonomistas desenvolvidas pelo Anarcoarquitetura.  

Além de mim e o Renzo, alguns outros colaboradores trabalharam na execução de nosso projeto. Tivemos que contratá-los devido ao extenso conjunto de incumbências e atividades simultâneas que a obra da Casa Fortaleza requeria. Mas conseguimos criar relações horizontais de trabalho. A organização das tarefas e encargos excluía o modelo hierárquico, não havia chefes, assistentes também não. A gente outorgava autonomia aos contratados. Nós estávamos aprendendo a construir, então acolhíamos o conhecimento alheio. A competência variada de cada um que prestava serviço em nossa obra enriquecia a experiência. 

Inventamos novas formas de cooperação. Em uma economia afetiva, a força de sociabilidade é favorecida, assim como potência do ser humano comum, trata-se de uma conjunção que rende comunialidade.

Pensamos também no ecossistema, nas interações entre os seres vivos e os fatores físicos, químicos e geológicos do ambiente, como água, luz, solo, umidade, temperatura, nutrientes - a multiplicidade constituída de inter-relações entre componentes bióticos e abióticos. 

Ao contrário da maioria das pessoas que constroem nessa região, as quais se desobrigam de preservar o meio ambiente, mesmo e sobretudo as que se consideram “esclarecidas”, nós valorizamos o equilíbrio entre o ser humano e a natureza. Buscamos agir de acordo com a ética do humano-produtor que procura resguardar a biodiversidade, no qual, o espírito predador está ausente. Nós não cortamos árvores, não quebramos pedras, não interferimos na paisagem. A gente não cortou o terreno, usamos a tecnologia da palafita para nossa edificação, escolhemos cores e princípios formais estéticos que põem a casa e a mata em harmonia. Pensamos na economia de energia, na potencialização da iluminação natural (fizemos muitas claraboias), nas estratégias contra umidade, no sistema de ventilação, no abrigo contra intempéries...  

Mariana Fernandes: Entendi, uma adaptação da casa ao lugar.

Laila Terra: E uma mudança na relação de trabalho. 

Mariana Fernandes: Sobre essa relação de trabalho, fazendo uma recapitulação histórica do status do artista de acordo com Giorgio Vasari no livro “Vidas de Artistas”, vemos que ele passou a ser visto como um trabalhador diferenciado a partir do renascimento, mas, ao mesmo tempo, percebemos pelo provérbio francês “Betê comme un peintre” que, ainda em 1800 era popular a ideia de que o trabalho manual estava abaixo do intelectual, em escala de prestígio cultural. No Brasil, essa discriminação é mais profunda por causa nosso passado escravocrata e perdura até os nossos dias. Como você entende essa busca por uma relação horizontal de trabalho entre vocês e as pessoas contratadas durante a execução do projeto Casa Fortaleza?

Laila Terra: É… isso é uma questão bem importante e, de certo modo, define a gênese processual da nossa obra. Apesar de conhecer alguns poucos exemplos de equipes que usam esse modelo cooperativo de trabalho, vejo como um problema não resolvido. Aliás, mostrar e defender a eficácia das relações horizontais, mesmo e principalmente, no processo das operações materiais envolvidas no trabalho artístico foi um dos fortes impulsos que me levaram ao programa de mestrado - desenvolver um estudo sistematizado nesse campo. Isso foi um dos fundamentos que justificaram meu projeto de pesquisa. Eu sinto na carne o problema da desvalorização do trabalho manual no Brasil. Trata-se de ignorância, além de ser uma irracionalidade. Fazer uma casa nos moldes que inventamos refletia para nós um problema conceitual incontornável, um problema de vida, de vida como obra de arte - aqui novamente encontramos Foucault em sua última fase. As pessoas nos perguntavam: “Vocês estão trabalhando com o quê?”, referindo-se ao campo da arte.  E aí respondíamos: “Estamos construindo a nossa casa”. Espantados diziam: “Bom, mas isso não é trabalho. Você não está recebendo por isso.  E a casa é de vocês, não está exposta ao público, ou, sei lá, à venda em alguma instituição de cultura...." A Casa Fortaleza é como já disse antes, uma obra em devir e ressoa Benjamin quando ele escreve a respeito dos fragmentos: “(...) as obras acabadas têm peso mais leve que aqueles fragmentos nos quais o trabalho se estira através de sua vida”. Até hoje, nossa vida é praticamente isso. Continuamos trabalhando na casa e a casa em nós, nem nós ou ela recebemos pagamento algum por isso.

Com relação ao desenvolvimento da qualidade de vida dos habitantes, percebe-se, em Ubatuba, uma disparidade entre o crescimento econômico e os avanços nos setores básicos como os da educação, da saúde e da renda. A análise do IDHM aponta que o município apresenta indicadores sociais inferiores à média da microrregião na qual está inserido, o que assinala um atendimento precário às necessidades  básicas da população. Lendo sobre estudos que analisam os impactos socioeconômicos, culturais e ambientais resultantes da intensificação do turismo em Ubatuba, observa-se que o setor de serviços foi o que mais se expandiu.

O “local” que tinha a terra, a plantação, a pesca foi, gradativamente, perdendo espaço.

A partir da década de 1970, para o poderoso processo de especulação imobiliária, que determinou o alargamento da parte rica da cidade em direção à orla marítima. A região sul do município, desde a divisa com Caraguatatuba até a área central, foi ocupada quase que totalmente por loteamentos de segundas residências, entremeados por pequenos núcleos de população fixa, comércio e serviços. Não desejávamos ser parte dessa marcha para o "progresso".
 
A nossa ideia era de um transcurso sustentável. A condição sine qua non para prosseguir com o nosso projeto foi: vamos ter que construir a casa! A gente não sabia nada. Então, tivemos que estudar, mas, principalmente, tivemos que desenvolver com os colaboradores uma confiança mútua. Aprendemos a valorizar a experiência alheia. Isso, no entanto, não evitou que durante o andamento da obra surgissem momentos de conflitos, de dificuldades de comunicação. O desentendimento causado, por exemplo, pela disputa de gêneros foi um desafio, mais frequente que o esperado, que precisei entender e superar. A divergência entre as diferentes perspectivas culturais, foi outro aspecto que gerou confrontos, demandando um esforço de aprendizado das partes envolvidas. 

Mariana Fernandes: Como vocês foram surpreendidos pelos colaboradores na construção? Eles trouxeram ideias novas? Propostas que foram incorporadas?

Laila Terra:  Eles nos ensinaram tudo. Não tínhamos competências, informações ou referências que nos embasasse nesse campo. A nossa formação nos deu um repertório de conhecimentos que foi um importante apoio para pesquisar e explorar esse território “estrangeiro”, nos forneceu os instrumentos para navegar nesse mar desconhecido: sabíamos ouvir e perguntar. 

Avisávamos aos parceiros contratados "...queremos te contratar para subir as paredes, só que nós seremos os seus ajudantes. Então você vai ter que nos ensinar a te auxiliar.”  

O fracasso da empreitada era uma ameaça constante e os momentos de desespero não eram raros, tantas vezes eu quis chorar calculando que não ia conseguir: “...tem 50 sacos de cimento aqui... como que vai ser fazer essa sapata?”  Então eu corria atrás de achar alguém que me socorresse ensinando.

Mariana Fernandes: Na época você era mãe?

Laila Terra: Não, entre 2013/14 demos conta de concluir, da casa, apenas o essencial que nos permitisse habitá-la. O Kilian nasceu em abril de 2015. Mesmo em condições precárias, nos mudamos no último dia de 2014. A casa não tinha porta, não tinha janela, não tinha nada… só plásticos para proteger do vento e da chuva. A parte mais difícil foi continuar a obra com um filho recém-nascido.

Mariana Fernandes: Hoje você considera a Casa Fortaleza finalizada?

Laila Terra: Quem chega aqui, acha que sim, que é uma casa finalizada. Olha e acha que está pronta, mas eu sei que não! Tem que fazer isso, fazer aquilo, aquilo outro... A gente mora aqui, mas como eu já falei, é moto-contínuo... é "devir casa" ou, ao contrário, "casa em devir". O Van der Rohe fez da Casa Farnsworth um projeto, ela estava pronta quando ele concluiu o projeto. Não era para ser habitada, era um modelo, pertencia ao mundo das ideias. O nosso caso é o inverso, a Casa Fortaleza nunca acaba de acabar. 

Mariana Fernandes: Nessa relação da Edith com o Mies van der Rohe, o que você enxerga de semelhante consigo própria? Você citou o incômodo, em relação ao projeto, como um sentimento dela no uso da casa...  

Laila Terra: Tem muitas coisas que senti de modo semelhante a Edith. Mas não mudaria nada no projeto do Mies van der Rohe, gosto da sua casa.

É uma casa muito bonita na minha avaliação. E não acho que as ardilosas narrativas sobre a casa, intencionalmente criadas para induzir o leitor a uma interpretação incorreta da sua história, possa invalidar as suas qualidades estéticas. Eu gostei ainda mais da Casa Farnsworth quando eu vi as fotos da Edith morando nela.

Quando você olha esse projeto que é uma casa-obra de arte autoral, uma casa-ideia assinada, com uma pessoa dentro morando, você percebe o quanto a casa incorpora a si mesma a sua habitante, tornaram-se as duas uma só casa-corpo, composto inalienável. Você pode ver que nesse encontro as duas converteram-se sincronicamente em sujeito/objeto. A operação poética inicial distendeu-se envolvendo a Edith no processo, como era seu desejo desde o princípio, finalmente uma coautoria, mesmo a contragosto de Van der Rohe.  Se me perguntassem, eu responderia de imediato, moraria na Casa Farnsworth, mesmo com toda narrativa machista que a fama da casa carrega.

Discutimos também esse assunto no contexto de um grupo de artistas mulheres, GOMA, para tentar desenredar as causas dessas narrativas, buscando iluminar as reais condições de sua origem, sem que seus aspectos característicos sejam obstruídos por uma nova camada interpretativa. Entender essa história do Van der Rohe e da Edith sob uma nova perspectiva significa aqui investigar um inter-ser, o entre as coisas que não designa encontrar a verdade absoluta da história, mas traçar em uma direção perpendicular um movimento transversal que carregue as múltiplas camadas de sentido para que elas possam se conectar umas às outras. Assim, procuro renovar, a contínua juventude do projeto, antes de tudo, da casa-multiplicidade, que faz proliferar seus estratos constitutivos.

Os princípios característicos dessa casa-multiplicidade concernem a seus elementos, que são singularidades; a suas relações, que são virtualidades; a seus acontecimentos, que são agenciamentos; a seus espaços-tempos, que são passagens; a seu modelo de realização, que pode ser anárquico rizomático; a seu plano de composição, que constitui zonas de intensidade; aos vetores que a atravessam, que tanto traçam seu territórios quanto seus graus de desterritorialização. Seguindo na lógica desse encadeamento, posso dizer que a associação Casa/Edith produziu experimentações poéticas de variadas naturezas: séries fotográficas, poemas, ensaios literários...

Eu comecei a entender, nesse contexto, a composição Casa/Edith e a me enxergar nela. Antes disso eu vivia a contínua frustração das invasões constantes das formigas, do ataque da ferrugem... E quando eu li os relatos da experiência vivida pela Edith, que põe em discussão, o ideário modernista de casa, eu comecei ver o “cocô de lagartixa” de outra forma...hahaha 

Mariana Fernandes: Como e porque você pensa desenvolver no âmbito institucional acadêmico de um Programa de Pós-graduação na área das Artes Visuais - Linha de Pesquisa: Processos de Criação em Artes Visuais, o seu projeto de pesquisa, cuja caracterização sui generis foge aos contornos clássicos que definem as Artes Visuais? A epistemologia que fundamenta a Casa Fortaleza, não é, ao que parece, científica, pois, por princípio, escapa à veracidade lógica, seja ela do tipo indutiva ou dedutiva, resiste às sistematizações e idealizações racionais. Não se trata, portanto, de uma proposição que se demonstra verdadeira a partir de fatos ou dados verificáveis. A rigor, nem mesmo uma tese comprovável, pode constituir.

Quais as implicações de trazer para o Departamento de Artes Plásticas (CAP) uma pesquisa que questiona uma concepção de conhecimento, cara ao seu corpo docente, baseada no continuun da própria história, desenvolvendo assim a crítica de um modelo de razão e de racionalidade modernista?


Laila Terra: Em que pesem as divergências de inclinações ideológicas, políticas, sociais, religiosas, intelectuais etc., no interior do corpo docente do Programa de Pós-graduação em Artes Visuais (PPGAV) da Escola de Comunicações e Artes (Universidade de São Paulo), o Departamento de Artes Plásticas (CAP), sede do Programa, sempre ofereceu a seus estudantes um ambiente que proporciona relativa autonomia ao desenvolvimento de seus processos investigativos. 

É sabido que minha pesquisa não vem manifestar em moldes "teoremáticos", com um argumento que pode ser demonstrado e comprovado partindo-se de hipóteses justificáveis. E o seu fundamento conceitual extravasa os limites convencionais que circundam a tradicional problemática da linha de pesquisa Processos de Criação em Artes Visuais, porque traça uma transversal que convoca conhecimentos como os da arquitetura, da sociologia, da antropologia, da geografia, da filosofia... Mas é no domínio das poéticas visuais que essa experiência investigativa encontra seu campo intensivo e qualitativo de expressão. Que processos cognitivos acompanham a minha sensibilidade enquanto eu crio? "O que em mim sente está pensando", afirmou Fernando Pessoa. O que se pensa em mim enquanto eu sinto ao criar é fruto de operações complexas e auto-estruturantes: o espírito sonhante, sob o poder de forças imaginativas que me fazem ver aquilo que ainda não está diante dos meus olhos; o espírito fabricante, sob efeito das fisicalidades do mundo, que me fazem materializar coisas que ainda não existem; o espírito ajuizante, sob a luz das avaliações conscientes, que me fazem refletir, questionar, analisar, corrigir, transformar e avançar. 

Portanto, trata-se, em primeiro lugar de uma pesquisa da sensação, que está longe de defender uma verdade universal ou de descobrir uma. O que rege o pensamento inscrito no projeto Casa Fortaleza é o sentido e o valor. As condições de verdade de uma proposição e a validade de um raciocínio, não garantem absolutamente que tenham sentido ou interesse, isto é, que respondam a um problema verdadeiro. Bergson em A Evolução Criadora denuncia o falso problema. Isso significa que o ponto de vista da lógica não protege da tolice, da indiferença das afirmações válidas que nos solicitam diariamente o espírito. Benjamin, em seus escritos, especialmente nos fragmentos de Infância em Berlim, também destaca uma crítica ao sistema de pensamento lógico-dedutivo que tanto influenciou a sociedade moderna, além de alertar contra um determinado modelo de razão e de racionalidade que concebe a história como palco de progresso e sustenta a noção de causalidade histórica. As categorias do pensamento implicadas no projeto Casa Fortaleza não são o verdadeiro e o falso, pois existem verdades da baixeza, mas são sim o elevado e o baixo, respectivamente:  o primeiro - aquilo que corresponde à invenção de novas possibilidades de vida; o segundo - as relações hierarquizadas de poder. A ideia que a Casa Fortaleza busca colocar em perspectiva responde ao problema do valor (alto ou baixo, nobre ou vil) do modo de ser/estar e agir no mundo - a produção da existência como acontecimento estético/ da vida como obra de arte.

Além da natureza transversal da pesquisa dedicada invenção problemática de seres de sensação, caracterizada pela multiplicidade sincronizada de processos cognitivos distantes que acompanham o "pensamento artista", este, que por isso mesmo não pode ser limitado à área de concentração das poéticas visuais; o projeto possui ainda uma complicação que dificulta mais severamente a sua realização em instituições acadêmicas tradicionais - seu modelo de desenvolvimento é acentrado e rizomático. Aqui vale lembrar novamente Benjamin e sua "contra-história", quando este propõe uma escrita "a contrapelo", que seja capaz de botar a nu a cadeia de acontecimentos e expor as falhas e lacunas do processo, conseguindo desse modo recuperar a experiência, nesse caso, da criação, em sua singularidade e abrangência e de maneira não apaziguada, para que os sentidos possam se multiplicar mais do que, serem reduzidos a uma unidade, que os separaria de seus potenciais. 

Restaurar a experiência Casa Fortaleza exige repor em algum meio expressivo o caráter de devir do seu ser, aquilo por que o seu ser devém enquanto é, como ser. Portanto, na escrita dessa "contra-história" nada deve ser deixado de lado, "... nada do que um dia aconteceu pode ser considerado perdido para a história" (Tese III - Benjamin). A invenção desta escrita deverá corresponder à aparição de fases na Casa Fortaleza - a experiência fabulada por escrito deverá equivaler esteticamente às fases da experiência visionária que eu vivi e, ainda, ela deverá ser a própria operação de atualização das potências virtuais da experiência vivida enquanto se efetua. 

Em outras palavras, dar a visão do que era invisível, mas se tornou para mim visionariamente visível, remete à criação de seres de sensação que possam restituir a experiência à outrem. Então, pretendo realizar a Casa Fortaleza "livro arte" ou "livro de artista" como uma operação de tradução intersemiótica, poética, da experiência Casa Fortaleza existente, na forma de uma composição cartográfica de registros de passagens intensivas e territórios afetivos. 

Para isso será preciso tecer um livro de matriz rizomática, nos moldes de um "colecionador" ou "trapeiro", figuras de Benjamin e de Baudelaire, respectivamente, combinando de forma paratática fragmentos de textos e imagens de muitas fontes. Nesse tipo de sintaxe proliferam zonas de vizinhança que ressignificam e recriam o passado sob apelo do presente. E o passado só pode ser reconhecido no presente. "Como as coisas aconteceram na realidade?" é uma pergunta que Benjamin não cessa de combater, porque elas não pararam de acontecer. Por esse motivo, as reflexões conceituais e críticas precisam ser colocadas como interlocuções polifônicas e ressonâncias que farão vibrar os sentidos. 
Nesse ponto volto a pergunta, essa qualidade de composição paratática e coordenativa da escrita, caracteristicamente desierarquizada e anárquica, causa estranheza e não tem apoio, mas é aceita no PPGAV como tese ou dissertação, enquanto que, na maioria dos programas de pós-graduação stricto sensu, exige-se do discente que suas produções textuais acadêmicas apresentem declarada e reconhecida metodologia científica, ao divulgar os resultados das pesquisas empreendidas de modo hipotático, subordinando as ideias umas às outras. 

Mariana Fernandes: Mas onde, então, você encontra apoio e orientação para o seu projeto de mestrado?

Laila Terra: A Branca (Coutinho de Oliveira) é minha orientadora. Se interessou desde o começo me dando apoio e lutando concretamente para que o projeto fosse aprovado. Mesmo quando o projeto foi recusado numa primeira instância, ela orientou para que eu pedisserevisão e sustentou sua avaliação justificando a singularidade poética da pesquisa e o mérito da respectiva investigação ser desenvolvida no âmbito do PPGAV. 

Mas na perspectiva acadêmica do PPPAV não há consenso quanto a relevância desse projeto para as artes visuais. Alguns nem creem que uma casa, mesmo com projeto arquitetônico sofisticado, reúna condições para ser considerada uma obra de arte, quando muito aceitam classificá-la como arte aplicada. Mas na duração da experiência original do projeto Casa Fortaleza, que envolveu a abordagem de metodologias e procedimentos de ordem poética específicamente visual, desde as etapas de concepção até as de realização, percebi que se tratava de "obra de arte" em múltiplos sentidos, porque era a produção concreta de um acontecimento estético surgida no seio da exploração de potencialidades da imagem, quanto a sua tradutibilidade e reprodutibilidade, em processos de composição e hibridação semiótica. E, a partir daí, intuí também que eu poderia desenvolver recursos de metalinguagem e sistematização que seriam adequados às formas de apresentação e documentação da pesquisa em arte.  

A Casa Fortaleza surgiu de um olhar intuitivo no âmago das coisas, em contraposição à sua compreensão intelectual ou lógica. Desabrochou de um mundo novo até então despercebido, face a confusão de um habitual pensamento cartesiano maníaco por dividir e classificar. As coisas e os motivos esperam maturação. Quando a mente está pronta, por uma razão ou outra - um pássaro voa, uma campainha toca, você retorna a sua casa primitiva. Isto é, reencontrarás o teu ser real. E por mais conteúdo que tenha, não há insight que possa ser apresentado ou demonstrado à uma apreciação intelectual. É uma espécie de percepção interna - não uma percepção da verdade de um simples indivíduo, mas a percepção da própria realidade em si mesma. A ideia aparece como um súbito relâmpago na consciência de uma "verdade" jamais sonhada - uma espécie de catástrofe mental, ocorrendo num instante, após o empilhamento de materiais intelectuais e demonstrativos, mas que atingiu o limite da instabilidade, todo o edifício desaba até o solo e, então, um novo céu se abre.

Considero extremamente importante mostrar que construir uma casa é mais que "construir" uma casa, é criar algo que responde a um problema de vida, é construir uma vida como obra de arte.

Digo que um trabalho de arte é um acontecimento estético, assim também a Casa Fortaleza. E sustento essa afirmação focando em meu próprio processo constitutivo. 

Porque a casa... a casa nunca se acaba de fazer... é casa-devir e devir-casa... Então o seu paradigma estético é o processual, mas em um plano transversal da existência. O processual é a própria transversalidade traçada entre a filosofia, a ciência e a arte, (plano de imanência filosófico, plano de referência científico e plano de composição estético). E a transversalidade é a única localização de um agenciamento processual. E o movimento da existência é o dos “devires intensivos e processuais”.

Sobre a casa - vou reproduzir aqui alguns fragmentos de textos que encontrei em O Que É Filosofia de Deleuze e Guattari que exprimem essa relação íntima entre a casa, sua construção (o processual) e a arte: 

A arte começa talvez com o animal, ao menos com o animal que recorta um território e faz uma casa (os dois são correlativos ou até mesmo se confundem por vezes no que se chama de habitat). Com o sistema território-casa, muitas funções orgânicas se transformam, sexualidade, procriação, agressividade, alimentação, mas não é esta transformação que explica a aparição do território e da casa; seria antes o inverso: o território implica na emergência de qualidades sensíveis puras, sensibilia (sensibilidades) que deixam de ser unicamente funcionais e se tornam traços de expressão, tornando possível uma transformação das funções. Sem dúvida esta expressividade já está difundida na vida, e pode-se dizer que o simples lírio dos campos celebra a glória dos céus. Mas é com o território e a casa que ela se torna construtiva, e ergue os monumentos rituais (...) que celebra as qualidades antes de tirar delas novas causalidades e finalidades. Esta emergência já é arte, não somente no tratamento dos materiais exteriores, mas nas posturas e cores do corpo, nos cantos e nos gritos que marcam o território. É um jorro de traços, de cores e de sons, inseparáveis na medida em que se tornam expressivos.
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O corpo desabrocha na casa (ou num equivalente, numa fonte, num bosque). Ora, o que define a casa são as extensões, isto é, os pedaços de planos diversamente orientados que dão à carne sua armadura: primeiro-plano e plano-de-fundo, paredes horizontais, verticais, esquerda, direita, retos e oblíquos, retilíneos ou curvos... Essas extensões são muros, mas também solos, portas, janelas, portas-janelas, espelhos, que dão precisamente à sensação o poder de manter-se sozinha em molduras autônomas. São as faces do bloco de sensação.

A casa participa de todo um devir. Ela é vida, "vida não orgânica das coisas". De todos os modos possíveis, é a junção dos planos de mil orientações que define a casa-sensação. A casa mesma (ou seu equivalente) é a junção finita dos planos ...

A casa também nos modificou. No sentido cotidiano mesmo. Levantamo-nos às 5 horas da manhã porque o sol nasce e a casa deixa que ele entre e venha nos acordar... Então chega noite levando embora a luz e nos dispensando, cansados, do trabalho... A casa, desde o seu nascimento é grávida de nós, ela nos gesta. Em sua duração ela nos produz como existências estéticas, nos revela sempre novas relações de vida e enquanto isso nós também nos encontramos grávidos dela. E isso é extremamente importante.

O Umberto Eco já disse que a forma da casa determina a sua rotina. No horizonte desse pensamento está a nossa terra, casa de nossa casa, o meio ambiente como a exterioridade que abriga e faz a nossa casa que abriga e faz a nossa rotina, que abriga e faz o nosso corpo, que abriga e faz a nossa vida. 

Mariana Fernandes: Você enxerga que a casa também influencia o processo de produção de outros objetos artísticos?

Laila Terra: Primeiro preciso dizer que a epifania que promove as novas ideias é fruto das manifestações do mundo, dos encontros e que estes podem ser de origem natural ou culturalmente produzidas. Assim, o insight pode vir do conhecimento adquirido no aprendizado de uma técnica operacional, por exemplo. Em tal caso, o mundo, ao se manifestar através de um fato cultural, pode traduzir-se num insight que provocará uma idéia, a qual poderá a ser produzida em um corpo material resultando na concretização da obra.

Então sim, tanto a Casa Fortaleza influencia o meu processo criativo agora, quanto o fazia, anteriormente, a Casa Farnsworth, em seu estatuto de projeto. Antes eu tinha uma grande dificuldade para enxergar isso, mas por conta da evolução dos estudos e exercícios feitos no transcurso do mestrado, não consigo ver diferente, não consigo nem ver como não via! Tenho observando com clareza essa influência que, inclusive, se projetou para o passado: "o passado Tornou-se imprevisível!". As camadas invisíveis, para mim, do meu trabalho, hoje me parecem explícitas. E agora, literalmente multiplicaram-se. E pensando no meu campo de visão cotidiano que se tornou ampliado, percebo muito mais nuances entre uma variedade maior de camadas. Entre a transparência da vista desimpedida e a opacidade das paredes, tem a translucidez do policarbonato que circunda a casa, que desfoca a singularidade das coisas, retira-lhes os contornos, consome a nitidez que lhes confere hecceidade, suaviza as fronteiras que as individualiza, mistura-lhes às suas zonas de entorno e essas entre si.  Multiplicam-se nesse cenário as camadas, os níveis de Luminância, assim como os gradientes de crominância e a profundidade de campo. A lógica dialética do ver e não ver deu lugar a uma lógica da diferenciação. Moramos em um lugar alto no meio da mata atlântica que nos oferece uma contemplação privilegiada da enorme variedade de formações, volumes, texturas, densidades; englobada em um diversificado conjunto de ecossistemas florestais com estrutura e composições florísticas bastante diferenciadas, acompanhando as características sazonais climáticas da região onde ocorre. A fauna é rica quanto a biodiversidade, mais de 261 espécies conhecidas de mamíferos, além de pássaros, répteis, anfíbios, insetos e peixes. E a nossa visão foi vertiginosamente ampliada e complexificada pela experiência dessa nova paisagem. Sinto meu corpo hoje constituído disso tudo...     

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